A chegada de Allyne Andrade no Fundo Brasil de Direitos Humanos foi muito planejada e estruturada. Mas, como a maioria das coisas deste ano, os rumos da história mudaram de última hora. O primeiro dia dela como superintendente adjunta dessa instituição essencial para o país, especialmente nos últimos meses, foi 17 de março, começo do período de quarentena.
Allyne iniciou sua trajetória, portanto, de casa, via Zoom – algo emblemático e que seria simbólico nos meses a seguir. Conheceu as 53 pessoas da equipe só pela tela do computador. “Não é o melhor jeito de começar, mas a generosidade da equipe e da minha parceira Ana Valéria Araújo compensaram”, conta a advogada, mestre e doutora especializada em Teoria Crítica Racial.
Não só seu início foi desafiador, mas o cenário que se desdobrava diante dela. Historicamente, o que o fundo faz é destinar verba a projetos que façam a defesa dos direitos humanos, centrando, principalmente, na questão racial negra e indígena, nas lideranças das mulheres e, acima de tudo, na manutenção e desenvolvimento do nosso Estado democrático.
Não precisa ter acompanhado de perto os noticiários para saber que tudo nessa lista foi ameaçado no último semestre, quando se desenrolou, além de uma crise sanitária, uma crise política e econômica. Sem hesitar, Allyne e equipe elaboraram uma estratégia em que, além de todos os outros programas que já estavam acontecendo, passariam a ter o fundo Covid-19, destinado às urgências humanitárias surgidas da pandemia.
Na prática, isso envolveu enviar recursos financeiros para garantir água, comida, medicamentos e produtos de higiene para mais de 270 iniciativas em comunidades no país todo – indígenas, quilombolas, ribeirinhas, carentes. Também foi acionado um plano de logística, para que quem fosse fazer a distribuição disso estivesse protegido e assistido.
O Fundo prestou atenção aos ativistas de direitos humanos, que, sob constante ameaça, mantiveram seus trabalhos para que outros não ficassem em situação de miséria ou mais ainda expostos a risco, inclusive de contrair o vírus. Por fim, se concentraram em auxiliar entidades, organizações e outros grupos de direitos humanos para se adaptar tecnologicamente ao sistema remoto.
Não foi tarefa fácil, mas, para Allyne, era seu dever. Não só profissional, afinal, ter chegado a esse posto é uma realização, mas também pessoal. Como gosta de destacar, Allyne é cria de movimentos sociais. “Nasci em uma família negra que acreditou na educação como ferramenta de ascensão. Depois, tive formação política com movimentos negros e de mulheres. Sonho que outras meninas tenham as mesmas chances que eu”, fala ela na entrevista para CLAUDIA.
Qual foi a estratégia que vocês adotaram para alcançar os cantos mais isolados do país durante a pandemia?
O Fundo Brasil apoia associações que atuam em todo o Brasil, então tem uma imensa variedade de organizações e povos. Conversamos com as entidades com quem já trabalhávamos para compreender no que precisávamos focar nossos esforços. Entendemos que os mais prejudicados financeiramente seriam aqueles impossibilitados de trabalhar.
Portanto, para esses locais organizamos remessas de cestas básicas, medicamentos, água. Criamos um fundo emergencial destinado a esse atendimento humanitário. Conseguimos doar 2,4 milhões de reais para mais de 270 projetos em todos os estados. Notamos um trabalho muito importante das mulheres nessa trajetória, elas assumiram, como normalmente fazem a missão de cuidar.
Agora, vamos focar na sustentabilidade das organizações de direitos humanos pós-pandemia. Lançamos dois editais focando na área de justiça criminal e de enfrentamento ao racismo. A ideia é garantir que esses grupos possam seguir fazendo seus trabalhos.
A longo prazo, qual o foco do Fundo Brasil?
Nossa missão é a defesa incontestável dos direitos humanos. Para tal, procuramos grupos menores, que estão na ponta social, no contato direto com as comunidades. Eles que nos ajudam a fortalecer a democracia através da reivindicação popular. Estimulamos isso, a formação de lideranças.
Essa é nossa linha primária. Dentro disso, olhamos para questões específicas, como o agravamento de conflitos no campo e na cidade para ativistas; a questão da área indígena e da conservação dos territórios dos povos originários; a linha de enfrentamento ao racismo, que inclui a justiça criminal.
A longo prazo temos que pensar em como garantir a sobrevivência das instituições que estão lutando por isso, ainda mais depois da crise que se iniciou este ano e deve perdurar.
A pandemia agravou um cenário que já era complicado no país. Como você o avalia?
É um momento de profundo retrocesso político. E temos uma crise econômica se desenhando. O teto de gastos provoca um achatamento das dívidas públicas no país, então teremos menos capacidade de garantir direitos como saúde, educação. Há também um discurso contra os direitos humanos, de ódio.
Precisamos lembrar, contudo, que a sociedade brasileira fez um pacto civilizatório após a ditadura, e ele aparece na nossa Constituição. É um documento que descreve a sociedade a gente acredita, que queremos. É um documento jurídico e também programático. Coloca a importância de agirmos em prol da efetivação do acesso à saúde e educação, a bens e direitos, à igualdade de oportunidade.
Esse é o momento de reforçar valores construídos a duras penas, fazemos isso dando visibilidade a movimentos sociais que colocam suas vidas à disposição dessa luta coletiva. Propomos uma pensata em sociedade do que queremos para o futuro. E, para isso, temos que construir mecanismos inovadores e sustentáveis para canalizar recursos e fortalecer essas organizações da sociedade civil.
O que perguntamos durante a pandemia era se a parcela da sociedade civil que está confortável financeiramente poderia destinar recursos para essas organizações. Centros financeiros, como o sudeste, podem garantir o acesso à internet de uma comunidade no interior de outro estado.
Por outro lado, os movimentos sociais ganharam mais destaque na mídia durante a pandemia, viraram assunto cotidiano. Isso ajuda?
Eu sou cria dos movimentos. Faço parte de uma família negra que acreditou na educação como forma de ascensão social e que dedicou todos seus esforços par que eu tivesse isso. No fim da adolescência, fiz minha formação política com o movimento negro. Uma parte do acesso que tive a estudar no exterior, conhecer professores no exterior e ter a possibilidade de fazer mestrado e doutorado é resultado do esforço de mulheres negras. Participei de cursos no Criola, por exemplo, que trazia esses intelectuais estrangeiros para dar aulas.
Além disso, fui cotista da Universidade Federal do Rio de Janeiro, então minha formação nesse estágio se deve a uma política exigida pelo movimento negro, por alunos de escolas públicas, por organizações indígenas não só para que tenhamos mais acesso, mas para que o espaço de ensino tenha mais diversidade de pensamento. Sempre fui de movimentos, desde os estudantis até os de mulheres feministas.
Hoje, vivemos uma situação complexa, pois o movimento negro tem sido vitorioso em diversas conquistas, garantindo seus direitos. Temos ganhado também mais espaço na mídia, autores como Silvio Almeida e Carla Akotirene estão entre os mais vendidos.
Estamos pautando as discussões sobre diversidade e inclusão, sobre a importância disso para a democracia. Ao mesmo tempo, temos muitos retrocessos o judiciário, legislativo e executivo. Acho que o cenário pode ser interessante, pois os conflitos que antes eram preocupação de um grupo específico se tornam problema de toda a sociedade, todo mundo passa a se preocupar e pensar nisso.
Se brancos e pessoas de outros grupos étnicos estão olhando para o racismo, o avanço pode ser maior. Espero que essas discussões mais abrangentes possam levar a uma movimentação, e não pare apenas na discussão, que as pessoas se mobilizem pela luta de direitos e transformação social.
Há uma parcela da população que resiste não só aos movimentos pelos direitos humanos mas a governantes que os defendam. Isso complica o trabalho do Fundo hoje?
O fundo tem uma atuação muito sólida de defesa de direitos humanos com olhar decolonial, reconhecendo os povos originários, os direitos territoriais, identificando e combatendo sistemas opressores.
Entendemos que essa dificuldade de parte da população em entender os direitos humanos é fruto de uma disputa narrativa. Quando você começa a conversar com quem está disposto a dialogar, você percebe que muitos concordam com o que falamos sobre liberdade de expressão, direitos à terra, saúde, educação, água, saneamento básico.
Quando você consegue quebrar o muro preconceituoso sobre os direitos humanos e fazer a ponte, mostrando o trabalho que fazemos, a pessoa se conecta com você, passa a entender o seu lado.
Infelizmente, não dá para negar que na conjuntura política temos vistos um crescimento de manifestações de ódio em relação aos direitos humanos, mas temos procurado construir diálogos. E, claro, proteger os ativistas dessas manifestações que têm se tornado ameaça de vida e de segurança.
Pessoalmente, onde deseja chegar com seu trabalho?
Eu venho de uma longa trajetória de luta pelos direitos humano, então tinha um desejo muito forte de estar em uma instituição com os mesmos valores, como é o caso do Fundo Brasil. Essa já é uma realização minha.
Também sinto muita felicidade de compartilhar a gestão com outra mulher e dirigir uma equipe majoritariamente feminina e negra – são mais de 50% dos nossos funcionários. Estar num espaço de diálogo com pessoas que fazem enfrentamento ao racismo, à violência contra as mulheres, defendem os direitos indígenas e LGBT+, entre outras coisas, é motivo de orgulho.
Quero que esse também possa ser o sonho de outras meninas e mulheres. E que elas tenham a oportunidade de chegar nesses espaços. Desejo políticas públicas efetivas no combate à desigualdade e ao racismo estrutural. Sinto que estamos perdendo os pequenos avanços que havíamos conquistado.
Meu desejo é, coletivamente, porque não acredito em conquista individual, alcançar uma situação em que a pessoa não seja a primeira a chegar nos espaços. Que nossa presença seja tão comum que a pessoa comemore uma conquista pessoal, mas não seja aquela que quebra barreiras depois de tantos anos de exclusão.
O que falta para termos mais mulheres eleitas na política