Comum na geração de jovens negros, o corre causa burnout cedo
O corre é o acúmulo de diversos trabalhos, além das tarefas da casa e de estudo, para gerar renda o suficiente para viver
Aos 19 anos, em pleno contexto pandêmico, segui um fluxo contraditório ao abrir mão de trabalhos. A atitude me levou a entender na prática que o corre, que eu tanto glamorizava, é muito mais nocivo do que podia enxergar.
No Brasil, a geração jovem preta majoritariamente periférica é submetida inconscientemente a esse fluxo, porque sabemos que para conquistar sonhos precisamos fazer três vezes mais, reflexo do racismo estrutural, que anda de mãos dadas com a desigualdade social.
Ter mais do que um trabalho fixo, vários projetos externos e outras demandas, entre elas domiciliares, quando não é por opção, mas por necessidade, é o que chamamos de corre. E carrega esse nome pelo sentido literal da palavra. Para dar conta de todos os boletos, temos que fazer o impossível e absorver cada vez mais trabalhos correndo.
Neste ano, vivi esse fluxo por escolha minha. Tive tantas oportunidades (mesmo em meio à pandemia) que escolhi trancar um semestre da faculdade por ensino remoto para abraçar o mundo. Até porque muita oportunidade de trabalho é um fenômeno raro para a natureza preta.
Foi assim que, aos 19 anos, eu cheguei ao que acredito ter sido a boca de um burnout. Repito: aos 19 anos. Mas eu sou uma jovem atípica, com um contexto vantajoso em comparação a muitos ao meu redor, e o que foi uma opção para mim é uma condição inevitável para muitos.
Enquanto eu tive a possibilidade valiosa de escolha, amigos próximos recorrem ao shopping-trem para não fechar o mês negativados – alguns para se manterem sozinhos, outros para completar a renda de casa, além dos que sustentam família. Justamente por ter tido escolha, pude evitar o colapso ao sentir os primeiros reflexos.
O convite para escrever esta coluna veio a mim com a pergunta: “Qual o seu sonho para o ‘mercado de trabalho’ do qual sua geração é/será parte?”. Essa foi uma das perguntas mais nobres que me fizeram em 2020. Meu sonho é ter o privilégio do tempo em mãos pretas para não precisarmos entrar em fluxos nocivos a fim de garantir fonte de renda ou ao menos conseguir enxergar quão nocivos são esses fluxos.
Quem corre sem pausa acaba perdendo o fôlego; a musculatura fraqueja; e o cérebro não oxigena devidamente. Ver um filme ou fazer uma atividade física passa a ser um momento tão raro quanto o alinhamento dos planetas.
A margem de erro também é muito valiosa, nos ajuda a entender o que realmente queremos fazer, qual profissão desejamos seguir e como. Para uma parcela da população que precisa se desdobrar para ter um ou mais trabalhos, deixando de lado talentos e sonhos, essa margem fica ainda mais cara.
Falando em talentos, seria um sonho também que os jovens pretos fossem incentivados desde suas primeiras manifestações. As periferias são pólos artísticos, e muitos jovem ganharam o mundo por causa disso.
Passou da hora de tomarmos essas habilidades como ferramentas de impulsionamento. Artista é, sim, profissão, qualquer que seja o campo, mas é necessário acreditar e investir nessa potência.
Ainda não sei dizer se, ao sonhar com o privilégio do tempo, da margem de erro e da valorização de talentos, estou com os pés no chão. Também não sei como nem em quanto tempo realizaremos esse sonho. Mas tenho certeza de que nenhum sonho é grande demais, porque esse é um campo que carrega dimensão infinita, tudo cabe nele.
O que vai dimensionar esse sonho e as chances de essas palavras se tornarem verossímeis? Talvez fadas madrinhas, gênios da lâmpada, duendes da sorte, deuses e deusas (quem sabe até um poço dos desejos), que, lendo esta coluna até o final, se disponham a transformar conosco esse mercado tão problemático.
Aniké Pellegrini (@keke_bp) é escritora, produtora de conteúdo digital, estudante de letras da Universidade Federal de Minas Gerais e um pouco blogueira. Apesar de fazer tanto e participar de vários projetos, é uma mina do corre em busca da serenidade
Estou com câncer de mama. E agora?