Conheça Ane Alencar, mulher pioneira no combate ao fogo na Amazônia
O amor pela Amazônia na infância resultou em uma vida profissional ativa na luta pela conservação das florestas do Brasil
Quando era criança, as visitas nos sítios com igarapés junto ao seu avô eram alguns dos momentos mais esperados de Ane Alencar, hoje com 48 anos, e geógrafa. Ela lembra com carinho das viagens que faziam para lugares repletos de natureza, que acenderam sua paixão pelo meio ambiente.
A imensidão das árvores e pequenez das pedras a fascinavam de uma forma que só uma criança curiosa conseguiria vislumbrar. Além de visitar os sítios junto com sua mãe e seu avô, eles passeavam pelas praias de Belém e lugares cercados de mata.
A curiosidade em entender a vastidão que era a natureza apenas aumentava. Diferente de algumas crianças, ela passava horas observando os mapas e atlas que seus pais tinham em casa. “Do ponto de vista de curiosidade, o que me atraiu pra área ambiental foram as rochas, gostava muito de entender como o relevo era formado, como as pedras eram formadas. E eu fazia coleção de pedras”, conta.
Quando chegou na adolescência e precisou escolher o que queria ser profissionalmente, por incrível que pareça, veio a dúvida – Ane não sabia se cursava Psicologia ou Geologia. “Fiz a concentração em ciências humanas pra fazer psicologia. No último ano do colegial, psicólogas foram pro colégio falar sobre seu trabalho e naquele momento eu vi que eu não queria”, recorda.
O reencontro com a Geografia
Cursar Geologia estava fora da área de conhecimento que de fato a interessava. Perdida e sem saber exatamente qual caminho seguir, a memória de sua infância veio à tona, e em uma pesquisa rápida, ela percebeu que a Geografia tinha tudo a ver com o que ela gostava.
“Eu agradeço, porque eu queria fazer geografia pra entender como as pedras se formam. Geografia estuda justamente como o homem e a natureza se relacionam, e como o homem transforma a natureza, então sem querer escolhi a coisa certa”.
Os efeitos de sua opção começaram a surgir de forma rápida, mostrando que de fato o encontro entre Ane e a Geografia estava alinhado. Ela foi a única de sua turma que escolheu o campo da pesquisa, e passou pela área de meteorologia, pedologia e cartografia. “Logo no segundo ano de faculdade, comecei a trabalhar com um grupo de pesquisadores da EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), em um projeto que pesquisava o enraizamento profundo na Amazônia”, relata.
Rapidamente ela foi incluída no setor de sensoriamento remoto e geoprocessamento. Apesar de nunca ter visto ou usado um computador, o que favoreceu sua atuação naquele lugar de fato era sua grande habilidade com os mapas. “Eu me apaixonei por isso e só fazia isso, e assim começou a minha carreira, continuei associada a esse grupo de pesquisadores”, explica.
A descoberta dos focos de fogo na Amazônia
Através de imagens de satélites do município de Paragominas no nordeste paraense, Ane notou algumas manchas nas áreas onde eram pra ser apenas florestas. Ao investigar mais a fundo, ela percebeu que, na verdade, aquelas manchas eram focos de fogo. “Era estranho porque a Amazônia não deveria queimar. Tinha incêndios florestais que estavam afetando aquela área, e sozinha eu comecei a mapear”, recorda.
O trabalho foi levado para a comunidade científica, que não acreditou muito nos dados mostrados por ela, por ser incomum. A partir de sua descoberta, outros estudos sobre a relação da exploração da madeira, desmatamento e o fogo começaram a aparecer.
A primeira vez que Ane viu, de perto, uma queimada foi um momento impactante para sua carreira no combate ao fogo. Ela visitava uma região em Paragominas, um local com árvores frondosas e uma floresta muito grande.
No dia seguinte, o fogo e o desmatamento consumiram completamente a floresta em questão. Um mês depois ela retornou na local. “Foi num fim de tarde pra noite. Paramos o carro e ficamos olhando aquele quadrado incandescente, o fogo alto já tinha parado e a gente só via brasa, no meio do nada, um escuro total”, lembra. “Víamos as árvores, alguns troncos em brasa, o chão também. Foi um momento que me fez refletir muito sobre o quão fácil é destruir algo que levou dezenas, centenas de anos pra se estabelecer”.
O trabalho de Ane foi ficando cada vez mais necessário para entender como as ações do ser humano na destruição da floresta. A geógrafa fez ummestrado em Boston (EUA) na Universidade de Boston, e ao terminar seu doutorado na Florida na National Science Foundation – sendo uma das poucas a receber uma bolsa de estudo – ela retornou ao Brasil como coordenadora do laboratório de sensoriamento remoto. “Começamos umas excursões pela Amazônia pra tentar entender o quanto essas políticas de infraestrutura para região causavam desmatamento, ou pioravam a questão ambiental. Então nós fizemos várias viagens nessas estradas, conversando com as pessoas, tentando entender as principais necessidades e o que poderia ser revertido ou não”, lembra.
Esse processo gerou duas coisas que Ane considera pontos fortes de sua carreira: a criação de unidades de conservação na área da Terra do Meio, no coração do Pará, a diminuição do desmatamento na BR-63 por consequência da criação dessas unidades. “Eu diria que esse foi um dos processos mais interessantes da minha vida como pesquisadora e como ambientalista”, explica.
O trabalho que deu inicio em Paragominas começava a germinar como uma árvore frondosa em outros lugares, e ela teve seu artigo publicado em duas importantes revistas científicas, Science e Nature. “Pra mim, como uma jovem cientista, nunca pensei que fosse fazer parte de uma publicação em uma dessas revistas. Foi bem importante pra estabelecer essa literatura sobre incêndios florestais na Amazônia, que até então era um tabu”.
Pioneira em combater o fogo na maior floresta do mundo
No início, a geógrafa não percebeu que havia poucas mulheres na pauta do fogo no Brasil. Se deu conta do legado que construiu somente nos tempos atuais, momento em que já existem inúmeras mulheres trabalhando no tema. “Eu só queria saber mais do assunto, não percebi que era uma das únicas mulheres. Hoje temos muitas em várias regiões, mas minha tese de doutorado foi a primeira a mostrar que estamos alteando o regime de fogo da Amazônia”.
Ela foi finalista no Prêmio Veja-se, na categoria Inovação em 2018, pelo desenvolvimento do aplicativo Alerta Clima Indígena, que auxilia os povos indígenas no monitoramento das principais ameaças aos seus territórios.
De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe), a Amazônia registrou um aumento expressivo de 60% em queimadas em relação a setembro do ano passado. Foram registrados 32. 017 focos de fogo.
Ane explica que as queimadas e desmatamentos nas florestas acontecem principalmente pela sensação de impunidade da parte de quem os provoca. “Não conseguimos controlar a pessoa com fósforo na mão, porque ela não sente que vai ser punida por fazer uma queimada ilegal. Enquanto a gente não combater isso e colocar de uma forma muito clara, estamos incentivando o desmatamento dessa ocupação desordenada”.
A geógrafa reforça que, a transformação dos hábitos é um assunto conectado com a Amazônia, e que existem muitos passos para a redução do desperdício, totalmente associado ao meio ambiente. “Precisamos começar a perceber o quão importante é esse assunto, e quanto nosso lixo muda quando repensamos ele. É a mesma coisa que cuidar da Amazônia, e esse olhar pra ela do ponto de vista de conservação, é conhecer e ter pequenos atos, a começar pelo desperdício”, diz.
“Não devemos tolerar o desmatamento ilegal, não devemos tolerar as queimadas ilegais, porque elas geram queimadas acidentais. Pessoas perdem pasto, produtos florestais, plantas medicinais, e além de tudo o fogo gera fumaça que tem um impacto significativo sobre a vida da pessoas não só no campo. O desmatamento seria estático, mas a fumaça viaja”, explica.