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Alcione: “Eu sou do tempo em que só homem vendia disco”

Ela conheceu o mundo, foi celebrada e virou ícone da música. Aos 76 anos, duas coisas ainda emocionam Alcione: seu lar, o Maranhão, e sua ancestralidade

Por Carol Castro
Atualizado em 11 out 2024, 10h45 - Publicado em 11 out 2024, 09h00
Alcione revista CLAUDIA
Ao longo da carreira, Alcione conheceu o mundo, foi celebrada e homenageada, virou ícone absoluto da música (Ladeira/CLAUDIA)
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Sentada numa cadeira, na varanda de casa, Alcione olha para cima, e permanece calada por cerca de 60 segundos. Um minuto antes, não pestanejou ao descrever a entrada no desfile da Mangueira, sua escola de coração, neste ano, como “uma das grandes emoções da vida”.

Mas quais outras experiências se equiparam àquela? Parece passar um filme de 76 anos pelos olhos marejados de uma das maiores cantoras do mundo. 

Não faltam momentos emocionantes nesse enredo. Alcione tinha acabado de receber a notícia de uma nova indicação ao Grammy Latino, premiação vencida por ela em 2003, com o melhor álbum de samba/pagode, e seria homenageada no Rock in Rio cinco dias depois.

Ao longo dos 52 anos de carreira, levou para casa outras cinco premiações internacionais, vendeu mais de 10 milhões de discos, fez shows em 36 países, e fechou parcerias musicais com grandes nomes de diferentes gerações — de Cartola e Maria Bethânia a Ludmilla

Mas não foi nada disso que passou pela cabeça de Marrom. Ela interrompeu o silêncio para lembrar de sua cidade natal. “Eu sou maranhense, e eu gosto muito quando vou a São Luís, quando vou beber água da minha terra. Quando vou a São Luís, eu vejo meus irmãos, minha família, meus amigos. É uma coisa muito perto da gente, coisas que não se apagam na vida, graças a Deus.”

Quem é Alcione
Vestido Candy Brown e Joias Swarovski (Ladeira/CLAUDIA)

A trajetória de Alcione

Alcione deixou a capital maranhense em 1967, a caminho do Rio de Janeiro com o sonho de virar artista. O pai, policial militar e regente da orquestra da corporação, não gostou muito da ideia — mesmo sendo ele o principal professor de música dos filhos.

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“Tinha uma vizinha que botava umas crenças na cabeça do meu pai. ‘Ah, tua menina quando chegar no Rio de Janeiro vai ter que dormir com diretor de televisão’. Então meu pai não aceitava.  Até que minha mãe chegou e disse ‘deixa minha filha, eu confio nela’. E eu ia ficar com meu irmão, que já morava no Rio, para tomar conta de mim. E ele toma conta pra caramba até hoje”, diz. 

“A África mexe diferente com você, porque você pensa na tua ancestralidade. É uma saudade bonita, de longe”

Alcione

Marrom se mudou para a casa de uma tia, onde o irmão já morava. Ficou lá até arrumar um emprego numa loja, a Império dos Discos, na Avenida Marechal Floriano, no centro do Rio. À noite cantava pelas casas de shows. “A noite é uma escola. A gente canta até aprender e eu aprendi muito”, relembra.

Ainda assim, nem sempre era fácil pagar a vaga no quartinho compartilhado, que alugou depois do emprego na loja de discos. Por diversas vezes, o dinheiro faltou e Marrom precisou dormir numa praça, em frente à pensão. “Meu irmão chegou e falou: se for para dormir em praça, tu vai voltar para o Maranhão. Aí eu parei com medo de voltar para casa, não queria voltar desmoralizada.”

Com dinheiro apertado e pouco sucesso, aproveitou a oportunidade oferecida por uma mulher que queria levar um grupo de brasileiros para cantar pela Europa. Era para ser um tempo curto, mas o dono de uma boate se encantou pela voz de Marrom e a convidou para ficar.

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“Fomos primeiro para Portugal, depois para Espanha, rodamos um pouquinho ali. Até música russa eu aprendi, ficava repetindo as frases igual um papagaio”, relembra, enquanto cantarola alguns trechos. “Sei lá eu o que significa a letra!”, ri. Ficou dois anos na Europa até voltar ao Brasil. 

Mãos e unhas de Alcione
Unhas Aline Carvalho (Ladeira/CLAUDIA)

As dificuldades que Alcione enfrentou e como fez sucesso

Antes da viagem, Marrom havia conhecido Jair Rodrigues, que a assistiu em uma das casas de show onde ela se apresentava. Ele queria apresentá-la a Roberto Menescal, à época diretor artístico da Philips, que procurava uma sambista. Ele estava atrás de alguém tão explosivo quanto Clara Nunes, que havia estourado com o álbum Alvorecer, pela gravadora Odeon, em 1974.  

Mas a Marrom ainda não cantava samba. Ela gostava de interpretar canções mais românticas, como as de Angela Maria, Nelson Gonçalves e Núbia Lafayette — de quem imitava até a voz.

“Eu gostava de jazz, gostava de música romântica. Eu ia muito no repertório delas, porque realmente enchia o coração das pessoas. Aí o Menescal me convida para gravar samba. Eu aceitei porque sempre achei que para ser uma cantora brasileira, você precisa cantar samba. Mas não é verdade, né, as cantoras podem tudo”.

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Nessa época, entre 1972 e 1973, Marrom lançou dois singles, sem grande repercussão. Em 2022, quando gravou o álbum Alcione — 50 Anos Ao Vivo, no Theatro Municipal do Rio, reviveu duas dessas músicas menos conhecidas: Figa de Guiné e Tem Dendê. 

Até que, em 1975, encontrou uma cantora que mostrou a ela Não Deixe o Samba Morrer.  “Mas o produtor dela disse que a música não era comercial. Então eu peguei e mostrei para o Menescal e ele topou na hora!”, conta.

Alcione revista CLAUDIA
Aos 76 anos, porém, duas coisas ainda a emocionam sem igual: seu lar, o Maranhão, e sua ancestralidade (Ladeira/CLAUDIA)

A música entrou no primeiro LP da cantora, lançado naquele mesmo ano — e virou hit eterno. O álbum A Voz do Samba, que ainda tinha o hit O Surdo, alçou Alcione ao sucesso, superando o machismo do mundo do samba nos anos 1970, dominado pela presença masculina. 

“Eu sou do tempo em que só homem vendia disco. A primeira a vender bastante foi a Clara Nunes. Eu e Beth Carvalho fomos entrando, mas mulher não vendia bem”, diz.

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“Quando eu entrei, a Clara Nunes já tinha aberto esse leque, feito a abertura para nós. E aí as mulheres também começaram a tocar bem também no rádio. Bethânia foi a primeira a atingir um milhão de discos vendidos”, se lembra Marrom, referindo-se ao disco Álibi, de Maria Bethânia, de 1978.

Desde então, Alcione gravou 42 álbuns, que lhe arrendaram 26 discos de ouro, sete de platina, três DVDs de ouro e um de platina. Uma pequena parcela deles fica exposta na parede de entrada de sua casa, em uma sala que dá para o jardim e a piscina. Na galeria de troféus, Marrom ostenta mais de 350 peças, entre homenagens e títulos, como o de melhor cantora popular, concedido pela Academia Brasileira de Letras. 

A vida de Alcione
Vestido Alessa; Capa J.boggo; Joias Brennheisen e Sandálias Room (Ladeira/CLAUDIA)

A importância de se colocar à frente de sua carreira

Alcione sempre escolheu quais músicas gravaria, como aconteceu com o hino Não Deixe o Samba Morrer. Em 1997, quando o compositor Paulinho Resende apresentou A Loba, escrita em parceria com Juninho Peralva, ela se surpreendeu.

“As músicas vão chegando e tu vai sentindo que não dá para deixar de cantar. A Loba foi mortal. Quando eu ouvi, pensei: eu vou rachar essa cidade no meio. A gente sente quando as pessoas vão ouvir e gostar.” 

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A música virou referência como um retrato do empoderamento feminino no amor romântico — uma mulher apaixonada, mas que promete devolver a traição, caso aconteça. Marrom se encontrou naquelas frases e naquela mulher. Escorpiana, ela adora dizer que a música retrata bem o seu signo: fiel e intenso, mas vingativo. 

Foi o mesmo sentimento quando ouviu Meu Ébano, outro grande sucesso, gravado em 2005. Ela saía do teatro Rival, na Cinelândia, quando o compositor Nelson de Moraes Filho, o Nenéo, entregou a ela uma fita.

“Ele me entregou e disse: ‘olha, toma isso aqui para vocês’. Quando eu ouvi ‘você é um negão de tirar o chapéu, não posso dar mole se não você créu’, eu sabia que não podia deixar de cantar”. O disco Uma Nova Paixão já estava fechado, mas Marrom acrescentou a música ao repertório no último instante.

Até hoje, Alcione escuta todas as composições que enviam a ela. “Graças a Deus, nunca tive problema com música, porque sempre tinha muito compositor para fazer música. Eu e minha irmã [Solange, que também é empresária da cantora] ouvimos todas. Eu escuto porque sou eu que tenho que gostar para cantar. Aí você faz uma garimpagem, 100 viram 50, até escolher qual gravar”, conta.

A trajetória emocionante de Alcione
Vestido Alessa; Capa J.boggo; Joias Brennheisen e Sandálias Room (Ladeira/CLAUDIA)

Religião, ancestralidade e Maranhão são fundamentais para Alcione

Deus é um nome comum nas frases de Alcione, seja ele de qual religião for: o altar religioso de Marrom mistura os orixás do candomblé e os santos católicos. Mas é o terreiro de Pai Celinho, em Duque de Caxias, que ela costuma frequentar, seja para as giras, aniversários ou consultas.

“No Maranhão, nós temos nossos encantados, os caboclos. Eu fui tomar mais conhecimento do Candomblé no Rio. É preciso ter muito cuidado para falar em nome de Deus. E eu senti uma seriedade muito grande em Pai Celinho, então só vou lá.”  

Alcione
Vestido Rober Dognani; Anéis, colares e brincos Swarovski e Pulseiras Acervo pessoal Marrom. Unhas Aline Carvalho (Ladeira/CLAUDIA)

Sua fé também se transformava em ato, seja quando ajudava conhecidos e amigos, seja quando distribuía comida a pessoas em situação de rua no Rio. Aos risos, ela e Eulália Figueiredo, assessora da cantora há 40 anos, se lembram de quando “botavam eles para rezarem”.

“Eu chegava e eles diziam: chegou, Alcione! A gente fazia comida, colocava numa van e ia entregar. Eu não sou uma pessoa tão boa assim, mas a gente gosta de ajudar, né?”

Pura modéstia. Alcione ajudou a fundar a Mangueira do Amanhã, em 1987, uma escola de samba mirim para crianças de 5 a 17 anos, que estejam matriculadas no ensino regular. A intenção dela era dar alguma atividade às crianças que estavam sempre desocupadas, embaixo de um viaduto na Mangueira.

Carreira de Alcione
Vestido Rober Dognani; Anéis, colares e brincos Swarovski e Pulseiras Acervo pessoal Marrom (Ladeira/CLAUDIA)

No Maranhão, virou madrinha do projeto Empreendedorismo Atrás e Além das Grades, do Instituto Humanitas 360. O projeto é uma cooperativa que revende roupas costuradas por detentas do estado.

Em seus atos, Alcione carrega consigo a consciência racial, seja na fé, nos projetos sociais ou na forma de se vestir — Marrom é famosa por vestidos e unhas coloridas, anéis e brincos grandes. “A minha avó era africana e a saia dela dava para cobrir aquela mesa ali de vidro”, lembra ao apontar para uma mesa no terraço. 

Não à toa, foram as viagens ao continente africano as que mais marcaram a cantora, que já rodou o mundo inteiro. “A África mexe diferente com você, porque você pensa na tua ancestralidade, nas músicas que ouve. Eu, pessoalmente, adoro o tambor de crioula no Maranhão [manifestação cultural afro-brasileira que envolve dança e música, originária do Maranhão]”, lembra ela, saudosista, com o olhar perdido novamente.

Antes de encerrar a entrevista, cantarola os refrões de uma música angolana que sabe de cor. A voz macia e inconfundível, com jeito de lar para tantos, toma o ambiente. “É uma coisa que vem de longe, uma saudade bonita, de longe.” 

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