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Diário De Uma Quarentener

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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O manual de sobrevivência de uma quarentener

A escritora e colunista Juliana Borges fala do desafio mental de ir ao mercado durante a pandemia

Por Juliana Borges
Atualizado em 4 abr 2020, 18h05 - Publicado em 2 abr 2020, 20h46
 (Photographer/Getty Images)
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São Paulo, 02 de abril de 2020.

Como passar por uma quarentena? Eu me lembro quando começaram as primeiras notícias sobre o coronavírus. Foi ontem, mas já parece uma eternidade, tamanho o estrago em muitas famílias, tamanha a mudança que um microrganismo está ocasionando em nossas vidas. A gente já fala do Carnaval, que aconteceu não faz nem dois meses, como uma lembrança antiga: “Naquele carnaval de 2020… quando a gente não sabia que tanta coisa ia mudar…”. É como se aqueles filmes que eu amava, e ainda amo, sobre futuros distópicos e apocalípticos estivessem acontecendo no real. E meio que estão. Eu sempre assisti a estes filmes xingando os protagonistas: “Como que ela não pegou a lanterna?”; “Por que eles vão justo no supermercado, sendo que ali pode ter uma alta concentração de zumbis?”; “Por que todo mundo resolve pegar o carro para fugir, sendo que isso vai engarrafar as principais saídas e, bem, não tem muito pra onde fugir?”.

Enquanto a utopia seria um estado ideal e, por isso, um “não-lugar” de tão perfeito; a distopia é sua antítese, marcada pelo autoritarismo; em que avanços tecnológicos ocorrem não pelo bem comum, mas pelo controle; um estado de imensa opressão e privação de todo tipo. Os melhores exemplos de distopias estão na literatura e no cinema com: “1984”, de George Orwell; “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley; “O conto de aia”, escrita por Margareth Atwood e produzida por Elisabeth Moss; “Farenheit 451, escrito por Ray Bradbury e dirigido por François Truffaut; ou nos contemporâneos e populares “Black Mirror, do diretor Charlie Booker; ou Jogos Vorazes, da escritora Suzanne Collins e adaptado ao cinema e dirigido por Gary Ross. Além de um filme brilhante, que fala exatamente sobre um vírus que dizimou quase toda a humanidade, como “12 macacos”, de 1995, dirigido por Terry Gilliam.

Mas o dia de hoje me lembrou, mesmo, de duas cenas de Jogos Vorazes. Se você não conhece, faço um resumo bem compacto – e já peço perdão aos fãs. Se trata da história de uma América do Norte pós-guerra, agora Panem, dividida em 12 distritos (o 13º foi destruído por ter se rebelado) controlados pela Capital, que por sua vez é uma cidade altamente avançada tecnologicamente, com abundância de alimentos e moda distinta e que controla os outros distritos de forma autoritária e tirânica. Há o evento televisionado chamado “Jogos Vorazes”, no qual cada distrito é forçado a oferecer como tributos um garoto e uma garota, que devem lutar até a morte e apenas um pode sair vitorioso.

Pois bem, a primeira cena que me recordei foi a de quando Katniss Everdeen, protagonista, se oferece como tributo no lugar de sua irmã mais nova. Eu fui a Katniss Everdeen da minha família ao ir ao supermercado, em uma breve saída para garantir suprimentos para casa. Eu estava toda equipada com o meu “kit sobrevivência ao coronavírus”, segundo recomendações de especialistas: meu mini vidrinho de álcool gel. Mas eu confesso para vocês que eu coloquei uma roupa que cobrisse meus braços e pernas. Eu fiquei na paranoia, antes de sair de casa, pensando que se alguém falasse muito perto de mim ou espirrasse perto de mim e as secreções desta outra pessoa caíssem em mim e eu passasse a mão no corpo sem saber… bom, vocês já imaginaram o nível de preparação. Acho que todos estamos assim. Eu também levei uma máscara na bolsa – eu não as estoquei e tenho algumas poucas para alguma necessidade. Mas daí me lembrei das recomendações. Eu estava no grupo de risco? Ao que parece, não. Tenho meus trinta e tantos anos, não sou fumante, bebo socialmente – apesar de isso estar mais constante na quarentena –, não estou com sintomas de resfriado ou doença congênita e não sou profissional da saúde. Então, não havia motivo para a máscara nem para luvas. Mas, ao chegar ao supermercado, inúmeras pessoas estavam de luvas. E passavam as mãos nos produtos e depois no rosto… com as luvas, que são o mesmo de suas mãos. Logo pensei “será difícil seguir as recomendações de especialistas?”, mas daí me lembrei de Katniss Everdeen.

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A segunda cena, logo no início dos jogos, é a de quando os participantes, ao soar do alarme, correm atrás de armamentos e materiais para a sua sobrevivência no centro da redoma. É uma carnificina já na primeira etapa. Pois eu me senti exatamente assim no supermercado. Como que a gente saiu do Carnaval, em que tudo isso parecia distante, e em poucas semanas, já estamos pensando em kits de sobrevivência e nos estapeando por 1 litro de alcool gel (70!) na prateleira? Por que tanta gente estocou papel higiênico? Eu achei absurdo ter que discutir com uma mulher no corredor do mercado porque ela não respeitava a distância de 1 metro por cliente, apesar do estabelecimento ter colocado diversos cartazes pedindo que essa regra fosse respeitada. Ela colocava a vida dela, de seus familiares, a minha e a de meus familiares em risco. E tudo para entrar na minha frente e pegar 10 sabonetes, sendo que a prateleira, ainda, estava cheia deles. O que aconteceu para que um rapaz se jogasse na minha frente para pegar um vidro de alcool, quando tinham mais outros 20 na prateleira e havia um cartaz enorme avisando que cada cliente só poderia pegar dois vidros?

O que seria um manual de sobrevivência para a “quarentena do coronavírus”? Por que, mesmo diante de tantos pedidos, as pessoas estão estocando coisas? Nos tornamos a Katniss Everdeen, tendo que correr por sua vida no início dos jogos? Se isso incluísse a parte em que organizamos a revolução contra a Capital, que seriam os ricos que estão em ilhas isoladas enquanto estamos dentro de nossas ilhotas-casas, para distribuir poder e pensar um outro jeito de viver o mundo, eu até acharia que valeria a pena. Mas ser a Katniss Everdeen na luta por… papel higiênico?

Durante as compras, eu pensei que a minha sobrevivência envolve a sobrevivência de muitas outras pessoas. Então, eu não peguei uma dezena de pacotes de papel higiênico, mas um. Eu não peguei dezena de pacotes de macarrão, óleo, nada disso, mas apenas o necessário para o mês. Até porque dia 05 está chegando e muita gente só conseguirá comprar depois disso. Eu, inclusive, funciono nessa lógica, já que sou autônoma também.

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Eu acho que o grande barato de Jogos Vorazes – desculpem, eu amo o que a gente chamava nos anos 90 e ínicio dos 2000 de “blockbusters” – é que há uma subversão da lógica imposta pela Capital. Os Jogos Vorazes são individuais, é a lógica do cada um por si. Katniss Everdeen vai de encontro a tudo isso. No primeiro, da série, ela não se salva sozinha, mas também o Peeta, um outro jovem também de seu distrito. No segundo, o “Em Chamas”, Katniss pensa no “Massacre Quartenário” – uma versão mais tensa dos jogos, envolvendo todos os vencedores das edições anteriores – como um jogo coletivo. Ela constrói aliados e todos jogam juntos. Com alguns se sacrificando para que outros sobrevivam, é verdade. Mas seu grupo se salva porque trabalha coletivamente, cada um exercendo as qualidades que tem de melhor. E assim segue a saga até a organização da revolução contra a Capital – que investe no espetáculo, que seria a nossa propaganda e pouca ação efetiva de políticos no momento atual; e na morte, com os jogos e a dizimação de vários distritos que ousaram questionar aquele sistema desigual.

A gente acaba achando que não pode fazer nada neste momento, mas estamos conseguindo ver renascer a solidariedade entre nós, mesmo estando distanciados. A gente pode lutar contra esta distopia. Ok, a utopia é perfeita demais para ser verdade. Mas a gente pode tentar chegar o mais próximo dela. Acho que o melhor manual de sobrevivência é o que contenha empatia, senso de coletividade e humanidade. A gente bem que poderia impulsionar as melhores qualidades de cada um em agir coletivo, para que a gente saia dessa mais fortalecidos. Não acha?

Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.

Acompanhe o “Diário De Uma Quarentener”:

01/04 – A rotina do isolamento de Juliana Borges no “Diário De Uma Quarentener”

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