Dia do Livro e a menina que amava livros
No Dia do Livro, que tal você escolher um para ser sua companhia e te levar para alguma aventura?
São Paulo, 23 de abril de 2020
“Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”
Clarice Lispector. Felicidade clandestina
Já na faculdade que fui entender, ao ler o conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector, com trecho na epígrafe, o que eu sentia quando estava perto dos livros quando pequena. A identidade com a experiência da personagem do conto foi espontânea, ela já começava sua história aludindo ao desejo atordoador de ler As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Segundo minha família, eu sempre fui uma menina dada à leitura. Antes mesmo de aprender a ler e a escrever, minha brincadeira preferida era fingir que estava lendo ou que estava escrevendo uma história. E, assim que aprendi a ler, ainda na pré-escola, tive das melhores surpresas que uma já apaixonada leitora poderia ter: cheguei em casa e minha avó havia comprado toda a coleção de livros do Monteiro Lobato. Não entrarei aqui no mérito e nas discussões em torno do escritor nem de suas histórias, se não para dizer que acredito que é sempre importante ler de forma crítica. Tudo. Não à toa, Fernando Pessoa nos avisava que o poeta era um fingidor; Machado de Assis nos colocava a pulga atrás da orelha em relação ao seu Bentinho, por muito tempo acreditado em seu furor em relação a Capitu devido a misoginia tão presente na sociedade. Eu lia o dia inteiro, abraçava aqueles livros, ria com eles, me emocionava também. “A Juju sempre foi quietinha. Bastava dar um livro…”, dizia minha mãe. Com Clarice, portanto, entendi todo aquele sentimento que tomava conta de mim em relação aos livros, tão pouco compreendido pelas amigas, por muitos adultos, mas sempre incentivado por minha família.
O livro é das tecnologias mais aprimoradas da humanidade. Imagine você que a escrita e algumas folhas de papel podem nos transportar para milhares de lugares. Já na antiguidade que se começa a pensar em livro, com o surgimento da escrita, do papiro, do pergaminho e do códice, principalmente. Na idade média, se intensificam os livros didáticos (com fins religiosos) e, com as reformas protestantes, também a escrita em línguas nacionais. Há, também, o surgimento da impressão e dos livros escritos em papel. E com o decorrer da história, o livro vai acompanhando estes avanços: o surgimento da tipografia, hoje os editoriais; cada vez maior portabilidade; edições diversas; a relação com várias outras mídias; o surgimento do livro eletrônico como mais uma possibilidade de leitura.
Nesse último, eu não acredito que o livro em formato papel vá sumir. Primeiro, porque estudos demonstram que lemos mais rápido no papel, já que ler muito tempo em tela é cansativo visualmente; segundo que ler envolve uma série de manias também. Eu adoro o cheiro do livro do novo ao antigo, sentir seu papel, apreciar fisicamente sua edição, carregá-lo na bolsa. Você pode me encontrar esquecendo variadas coisas na bolsa. Mas sempre me verá com algum livro e caderninho de notas. Já levei livros para encontrar amigas no bar, para festas e não me perguntem porquê.
O Dia do Livro e do autor foi instituído em 1995, pela Unesco. Pois é. A gente fala bastante do dia do livro e pouco sobre também ser o dia do autor e dos seus direitos. A data não foi escolhida ao acaso, mas por coincidir com as datas de morte do inglês William Shakespeare; do peruano Inca Garcilaso de la Vega; e do espanhol Miguel de Cervantes. Além de ser um dia para celebrar o livro, hoje também é dia de incentivar a leitura e de se discutir os direitos do autor. Segundo a Conferência Geral, que estabeleceu a data, o livro é dos mais poderosos instrumentos de difusão do conhecimento e que “toda iniciativa que promova sua divulgação redundará oportunamente não só no enriquecimento cultural de quantos tenham acesso a ele, mas no máximo desenvolvimento das sensibilidades coletivas”. E como estamos precisando destas sensibilidades nestes tempos, não é?
A data celebra, também, o autor e seus direitos legais por suas obras, muitas vezes negligenciado ou mesmo aproveitado inoportunamente. E uma coisa é importante colocar: muita gente não dá muita importância à escrita e ao papel do escritor como um artista. Sem contar a imensa confusão e desrespeito, muitas vezes, ao processo criativo do escritor, como se fosse algo fácil, que não demandasse esforço imagético, mas também físico. Antes de pensarem fácil, as pessoas poderiam se perguntar: se tão fácil, por que não faço também? Porque escrever envolve não só, e essa é uma parte não tão grande do processo, ter inspiração. Mas trabalhar tecnicamente estas inspirações, lapidá-las, o que demanda pesquisa e reflexão. Importante pensar sobre essa forma de arte, mas também do trabalho envolvido nisso, não é?
Infelizmente, lemos muito pouco no Brasil. Segundo a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, de 2016, líamos uma média 2,34 livros por ano, apenas, por habitante. Entre os jovens, essa marca atinge 4,96 livros. Mas muitos didáticos, pedidos na escola. Só para você conseguir ter uma ideia, na França, a média de leitura é de 21 livros por habitante por ano!
O importante é pensarmos o dia de hoje como um momento de celebrarmos a literatura e as diversas formas de escrita, tão essenciais para compreendemos o que somos, para estabelecer identidades. Meu gosto pela leitura, minha felicidade clandestina ao tocar um livro, as diferentes emoções que a literatura desperta em mim foram fundamentais para a construção da minha identidade; para eu entender como sou, ou tentar; para eu construir ou reforçar sonhos; para eu definir o que gostaria de ser; o que gostaria de estudar; para eu construir e compreender o que me completa.
Então, nessa quarentena, que tal você escolher um livro para ser sua companhia e te levar para alguma aventura? Ou mesmo um livro para você ampliar seus conhecimentos por algo que já te interessa há algum tempo? E quem já ama ler, o que está lendo agora? Ao que parece, essa tecnologia está longe de ser superada. Ainda bem!
O mais estranho disso tudo, ou o mais legal, é eu ainda me enxergar naquela menina que ganhou a coleção de livros, naquela menina que se enxerga no conto lispectoriano, naquela menina que amava, e ainda ama, os livros.
Acompanhe o “Diário De Uma Quarentener”:
01/04 – A rotina do isolamento de Juliana Borges no “Diário De Uma Quarentener”
02/04 – O manual de sobrevivência de uma quarentener
03/04 – Permita-se viver “o nada” na quarentena sem culpa
06/04 – O que a gente come tem algo a ver com as pandemias?
07/04 – As periferias e as mobilizações na pandemia
08/04 – Um exemplo de despreparo em uma pandemia
09/04 – Como perder a noção do tempo sem esquecer a gravidade dos tempos
10/04 – Não é hora de afrouxarmos o distanciamento. Se você pode, fique em casa!
11/04 – 3 filmes para refletir sobre a pandemia da Covid-19
12/04 – Nesta Páscoa, carrego muitas saudades. Hoje, minha mãe completaria 54 anos
13/04 – Obrigada, Moraes Moreira!
14/04- E aí, quais são as lives da semana?
15/04 – Como praticar autocuidado radical?
16/04 – #TBT da saudade do mar
17/04 – Precisamos falar sobre a pandemia e violência contra as mulheres
18/04 – Mulheres na política fazem a diferença também no combate à pandemia
19/04 – Quem cuida de quem cuida?
22/04 – Dia da Terra e o futuro da humanidade